Cânone brasileiro

“O quinze” no limiar entre o cinema e a literatura

Sem dias frios, Djavan precisa se contentar com livros bons para se ler em qualquer lugar

O Quinze
O Quinze

O Brasil vive o maior período de estiagem desde o início do monitoramento desta série histórica. É certo que seca e estiagem se referem a eventos diferentes, mas a falta de chuva faz lembrar que já vimos coisas assim antes na literatura e no cinema.

Hello Bet
Hello Bet

“O quinze” é um clássico, indiscutivelmente, faz parte do cânone brasileiro e é uma das primeiras lembranças quando pensamos em “livros sobre a seca”. Um livro de 1930 sobre a grande seca de 1915, que atravessou o ano sem chuva fazendo todo tipo de vítimas e imigrantes, pondo à prova toda resiliência.

No livro de Rachel de Queiroz, acompanhamos Conceição, Vicente e Chico Bento em três perspectivas diferentes sobre o período: quem vê de fora, quem fica e quem vai, respectivamente. Conceição é professora e ajuda os retirantes que vão dar na sua cidade em situação miserável. Vicente é o filho peão de um proprietário de terras e, teimoso, insiste em alimentar as rezes que vão resistindo também. Chico Bento é um peão que se viu retirante depois que teve seus serviços dispensados depois que a patroa mandou soltar os animais para que morressem no mundo. 

Durante a leitura, no entanto, salta aos olhos os distintos dramas a que são sujeitos. Enquanto Conceição e Vicente, casal enamorado, vivem paralelamente a questão da diferença social, Chico Bento vive o esvaimento de seu orgulho, a um fio de faca de esquecer a humanidade, e a perda de seus filhos pelo caminho: um morre envenenado pela fome, outro some e um é deixado para a madrinha criar.

Já o filme de 2004, dirigido por Jurandir de Oliveira, é uma obra menor. Baseado no livro homônimo, o filme é fiel em muitos diálogos, quase ipsis litteris, e tenta condensar a trama, inserindo falas e pensamentos que farão sentido depois. Algumas escolhas, no entanto, são questionáveis. 

Chico Bento, por exemplo, só tem quatro filhos e Vicente é um galã desprovido da rudeza que tanto o diferencia do irmão doutor e que está no cerne do distanciamento de Conceição. Além disso, o mesmo filme que poupa o espectador do processo de definhamento das personagens, das cenas mais cruas da seca acha por bem inserir uma cena de estupro e outra de sexo de Vicente e visagens que vai na contramão da índole original de Vicente. 

Isto posto, é preciso reconhecer o poder de uma boa locação. A paisagem seca e quebradiça do filme complementa bem a imagem evocada pela escritora em seu livro, ilustrando a devastação causada pela ausência de chuva e, desta maneira, insere o espectador nesta realidade seja para as tristezas, seja para as alegrias: impossível não vibrar com os gritos de chuva ou se enternecer pela fala sobre “recomeçar de novo” de Mãe Nácia. E em se tratando da terra e de (bons) livros, é isto o que vale, é sempre tempo de recomeçar.