Foi Magalhaes Correa quem inventou o termo Sertão Carioca?
A resposta a essa pergunta não é tão simples.
Mas não, não foi Magalhaes Correa que inventou o nome pelo qual ficou conhecida por um certo tempo a área da antiga zona rural da cidade. Território esse que hoje conhecemos como Zona Oeste, incluído aqui – além de Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz – localidades como Jacarepaguá, Barra da Tijuca, Recreio, Vargens e Madureira.
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Contudo, a contribuição do naturalista e escritor para a popularização do nome foi imensa.
Precisamos voltar no tempo, pois há mais questões em jogo. A palavra “sertão”, por exemplo, antes de figurar como um nome na boca, mente e textos da opinião pública, era um termo usado para qualificar um determinado território. Era um adjetivo, portanto. Só depois de algum tempo ela figuraria apenas como um nome. Temos que ver como isso se deu.
Ao mesmo tempo, é importante que nos debrucemos sobre as razões que levaram imprensa, autoridades políticas e o público em geral a consagram a palavra “sertão” para nomear aquela região.
Até mais ou menos fins do século XIX, o território era conhecido como “arrabalde”, ou também chamado de freguesias “de fora” (da cidade).
Com a expansão urbana verificada a partir do final do século XIX e com as reformas urbanas vivenciadas pela população, especialmente a partir do governo Pereira Passos, importantes modificações em termos de nomenclatura geográfica da cidade.
Em certas ocasiões, especialmente na imprensa e no legislativo carioca, pode-se encontrar até mesmo referências a essa “zona rural” como sertão, no mesmo sentido conferido no século XIX e início do XX. Sertão tem aqui a ideia de uma distância em relação ao poder público e aos projetos modernizadores.
E além do pouco incentivo à agricultura, um dos elementos mais destacados como possíveis indicadores dessa “distância” e “abandono” eram as condições sanitárias e grau de incidência de epidemias.
Afrânio Peixoto, escritor e professor de higiene na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, era uns dos especialistas “alarmados” com tal situação. Segundo ele, o número e incidência de epidemias seriam suficientes para que se pudesse classificar a região como um verdadeiro sertão.
Se raros escapam à doença, muitos têm duas ou mais infestações […] Vêem – se, muitas vezes, confrangido e alarmado, nas nossas escolas públicas crianças a bater os dentes com o calafrio das sezões […] E isto, não nos ‘confins do Brasil’, aqui no DF, em Guaratiba, Jacarepaguá, na Tijuca […] Porque, não nos iludamos, o ‘nosso sertão’ começa para os lados da Avenida [Central]…” (Trecho extraído do trabalho de Gilberto Hochman – A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo, Hucitec/Anpocs, 2012).
Portanto, foi nesse contexto, de pelo menos as três primeiras décadas do século XX, que a expressão “sertão” ganhou força como forma de definir o que eram as zonas suburbana e rural do então Distrito Federal.
E a forma como se dava essa definição era francamente negativa. Não sobrava praticamente quase nada de positivo para os subúrbios, ou, como um dia afirmou Lima Barreto, o “refúgio dos infelizes”.
Esse viés negativo também era visível nos pronunciamentos da imprensa local.
Na edição de 15 de julho de 1909, de O Paiz, por exemplo, podemos ler essa interessante descrição da região.
Pelas estradas tortuosas dos subúrbios, espécie de sertão carioca, […] onde o espirito descansa da vida urbana intensa, onde pode gozar a amenidade de ares mais refrigerantes, abrindo o apetite para um almoço tardio, entre as arvores galartes da nossa decantada Tijuca.
Encontramos aqui nessa passagem o que talvez possa ser o primeiro registro em que a área que hoje conhecemos como Zona Oeste é chamada de Sertão Carioca. Na verdade, “sertão carioca”.
Sim, porque o termo não tem aqui o significado de um nome de um lugar (topônimo), e sim uma qualidade, como que uma característica do território. “Sertão” funciona aqui como sinônimo de território longínquo, precários, não-civilizado, de perfil agrário – onde a urbanização ainda não chegou.
Ainda segundo o jornal, tratava-se de um lugar onde tudo faltava: escolas, hospitais, boas estradas. Um “verdadeiro Matto Grosso das nossas fronteiras abandonadas”. Cuja progresso e melhoria só poderia ser pensado através da organização de “uma nova bandeira de penetração aos desconhecidos e abandonados sertões cariocas” (O Paiz, 15/071909).
O termo reapareceria anos depois no mesmo O Paiz, em reportagem a respeito da inspeção escolar realizada pela prefeitura da cidade no ano de 1914. A palavra “sertão” novamente seria registrada. Mas aqui, é possível observar o “sertão carioca” funcionando aqui como a denominação de uma área bem delimitada:
Ainda em referencia ao serviço escolar na zona suburbana, procuram tomar medidas garantidoras da permanência de professores naqueles districtos do sertão carioca […] (O Paiz, 16/08/1914, p. 7).
Demoraria mais uma vez para o termo “sertão carioca” dar as caras novamente. Cerca de 10 anos depois. e no plural. Numa nota a respeito dos jogos praticados na cidade gaúcha de Pelotas, o seu autor sublinha que o “avança” (espécie de jogo do gamão) era muito difundido “pelos sertões cariocas” (Jornal de Theatro & Sport, 4/10/1924, p. 8).
Em 1929, outra ocorrência. A palavra “sertão” é utilizada para destacar o papel dos jesuítas na expansão da cidade do Rio pelas suas “áreas mais distantes” (Correio da Manhã, 17/02/1929, p. 8).
Entretanto, no mesmo ano, podemos flagrar o emprego da palavra “sertão” com o mesmo sentido das aparições anteriores. Mas o que mudaria seria a ênfase numa outra característica da região. Além de distante, pouco desenvolvida, precária em termos de salubridade, a região suburbana da cidade era dominada por determinados políticos, tidos como também atrasados, de práticas pouco republicanas. Máximos representantes de um país antigo, corrupto e avesso ao progresso.
O jornal A Rua, sem qualquer rodeio, traça um quadro da região dos mais negativos. Não pelo que ela era em si. O problema era muito mais a associação dela com figuras políticas bastante contestadas pelo que representavam em termos de conduta. Na avaliação que ele faz do então candidato Júlio Cesário de Mello à cadeira no Conselho Municipal nas eleições de fevereiro de 1927, por exemplo, essa associação é estabelecida. Assim, o pasquim resumia o perfil do candidato:
Julio Cesario
É o candidato do “Far-West”.
Está eleito. Os sertanejos da zona desconhecida de além-Santa Cruz recebem na bocca da urna as chapas com votos acumulados e onde eles queiram recalcitrar tem o recurso da acta falsa.
Foi o defensor do bernardismo, o amigo de Fontoura, o eleitor de Mendes Tavares na farça(sic) criminosa de 1924.
É inimigo do povo, e partidário da tyrannia, mas o sertão carioca e o matadouro garantem-lhe os seus contos mensaes (A Rua, 23/02/1927, p. 1).
O satírico O Malho (28/05/1927), também reconheceria o domínio de Cesário de Mello sobre o território. Azevedo Lima, líder político de São Cristovão, com estreitas ligações com o Partido Comunista, decidira não apoiar J.J. Seabra para as eleições para o senado naquele ano, e sim Julio Cesario de Mello, “em nome, certamente, das suas doutrinas e dos seus compromissos communistas”. Daí que ele tivesse o
Desejo de apoiar um candidato que – dentro da classificação marxista – será um pequeno burguez liberal, inclinando-se para o Sr. Cesario de Mello, que representa os agrários do sertão carioca…
A irônica reportagem do jornal A Manhã é também expressiva dessa visão do “sertão carioca” como a terra dominada pela política arcaica. Na edição de 29 de outubro de 1929, a publicação trata da “peixada” ocorrida na localidade de Guaratiba, reunindo os intendentes (vereadores) do Conselho Municipal, e que foi promovida por políticos do chamado “Triângulo Carioca”, os intendentes Mario Barbosa e Caldeira Alvarenga:
A peixada de hontem em Guaratiba, segunda da série que os representantes do “sertão” carioca offereceram este anno, não teve propriamente um caracter politico. Por isso mesmo mesmo deixou de ser uma “peixada cívica”, como aquella outra, a qual compareceu, com o seu apetite magnífico, cavando votos para o “seu” Julinho, o incomparável epicurista que dirige os destinos da nação (p. 12).
“Triangulo Carioca” era o nome dado a área compreendida pelas freguesias de Guaratiba, Santa Cruz e Campo Grande. Eram as principais freguesias da antiga zona rural carioca. Como dito acima, tal região seria controlada política e economicamente por alguns grandes proprietários, como os dois intendentes citados, sendo que o mais poderoso seria o dr. Julio Cesário de Mello, o “Julinho” mencionado na reportagem.
Todavia, essa era uma avaliação de quem fazia oposição aos grupos políticos hegemônicos do “Triângulo”.
Essa não era certamente a leitura daqueles que detinham o poder sobre o território.
Continua….




