Depois do infarto

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A vida fica mais lenta após o infarto do miocárdio, e sentimos um pé no vazio e no silêncio. Como o coração é o órgão que digere os sentimentos, advém uma sensação de fim de linha, logo superada, quando nos lembramos das rosas e do mar. Depois do infarto não há mais urgência, e nos apegamos ainda menos a tudo. E quando tudo passa, logo depois daquela dor pungente, nem os livros que escrevemos nos importam mais, até porque eles não são mais nossos; são de quem os ama. Será que alguém ama alguma das histórias que criei? Creio que não. Talvez ame um verso, ou só o título de um conto, quando muito. Mas que importa, agora, depois do infarto?

As dores começaram há muito tempo, alimentadas por exageros inacreditáveis, mas dos quais não me arrependo, porque o passado não existe. Como, não existe? Alguém pode provar que o passado existe? Só existe o agora, e agora estou escrevendo este texto sobre o passado. Então, o passado é só isto: um texto. A primeira estrela explodiu na madrugada de 12 de novembro. Fui a nocaute. Mas não estava mais raciocinando direito, e pensei que fossem prosaicos gases. De manhã, fui caminhar, com minha gata, Josiane, no Parque da Cidade, mas me faltou ar e voltei para casa. Minha gata queria me levar imediatamente para o Pronto Socorro, mas resisti.

À tarde, fui ao supermercado, parando no caminho todo. Já não raciocinava mais. Na madrugada do dia 13, as estrelas começaram a explodir, uma a uma. Enquanto minha gata chamava o Uber, peguei uma agulha de acupuntura e furei meus dedos dos pés para sangrá-los, aliviar a tensão e chegar a tempo ao Hospital Brasília, no Lago Sul. Quando chegamos, enquanto minha gata cuidava da papelada, entrei na sala do clínico geral para ele preencher a papelada dele. Então gritei, o mais alto que pude: – Estou sofrendo um infarto!

Para ver como são as coisas. Em vez de usar o neologismo “infartar”, mais direto, rápido, disse que estava sofrendo um infarto. Mas surtiu efeito. O clínico geral, um rapaz simpático, renunciou à anamnese, me pôs numa cadeira de rodas e minha gata levou-me para a antessala de cirurgia, onde uma equipe médica se reuniu. Uma enfermeira perguntou o que eu estava sentindo. – Infarto! – gemi.

Eram 5 horas, a mesma hora de quando eu nasci, quando o dr. Fabio Feurharmel Giuseppin começou a intervenção. Apaguei. O dr. Fabio introduziu por meio de um cateter na artéria do braço direito um stent na desembocadura da principal artéria do coração, que estava entupida. Aí, fui levado para a UTI.

Passei a quarta-feira enjoado. Quase não comi nada, e vomitei. No dia seguinte, amanheci com fome, tomei banho e caminhei pelos corredores do hospital ao lado de uma enfermeira alta como uma modelo, de modo que quando o dr. Fabio foi me visitar me encontrou rindo e inventando que tentei fugir do hospital, de camisola, mas fui identificado e detido no outro lado da rua e conduzido para a UTI.

Mais tarde, inventei que à meia-noite um paciente internado na UTI arrancou todos os fios ligados a ele e foi à lanchonete, onde pediu 10 quibes e um litro de Coca-Cola, aí, foi agarrado e descobriram que se tratava de um gorila, pet de um sujeito que adorava o gorila e não queria interná-lo numa clínica veterinária. Então me alertaram que os enfermeiros poderiam ouvir aquelas histórias e pensarem que eu estivesse louco, e eu acabasse na ala dos alienados. Fazia sentido.

Sexta-feira, comecei a sentir tédio, e fui informado de que quanto mais eu caminhasse, mais cedo receberia alta. Então, na companhia de um enfermeiro tão jovem que parecia um garoto, andamos por todo o jardim, que tem um lago cheio de carpas e tilápias e quatro mangueiras. No mesmo dia, pedi para deixar a UTI e sábado de manhã fui para um apartamento. Domingo, eu estava inquieto. Quando o médico do dia, dr. Samuel Abner da Cruz Silva, chegou, conversei com ele e depois de me examinar e fazer várias perguntas, convenceu-se de que eu estava realmente bem, e me deu alta. Voltei para casa.

Aos poucos, volto a sentir os rumores do Sudoeste, do quarto andar do meu prédio, e o cheiro do Parque da Cidade, a sentir a pele da minha gata quando a madrugada é a única coisa que existe no mundo, e voltei a percorrer minha estante, a voltar a trabalhar em um novo livro e a sair de vez em quando. Depois do infarto, basta a lembrança dos que amamos para que nos sintamos o homem mais forte do mundo, o mais rico, mais feliz.

Depois do infarto, sinto, urgentemente, que nada é mais importante do que amar, pois o amor a tudo aplaca e cura, e que devemos ser felizes, pois o riso e o perdão são pepitas de luz que depositamos no coração dos que nos amam. E é por eles, os que nos amam, que devemos superar o infarto, e, quando for a hora, partir discretamente, sem que ninguém perceba, para as estrelas.

Ray Cunha

Escritor, jornalista e terapeuta em Medicina Tradicional Chinesa.

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