Anistia de militares é socialmente limitada e ideologicamente norteada, diz analista

O governo Bolsonaro publicou no Diário Oficial desta segunda-feira (8) a anulação da portaria 1.861, de 14 de julho de 2004, que considerava anistiados políticos 295 cabos da Aeronáutica perseguidos durante a ditadura militar. A medida foi assinada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Regina Alves, no dia 5 de junho.

A justificativa apontada é “a ausência de comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo”. Em novembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o governo a revisar as anistias concedidas a mais de 2,5 mil cabos desligados da Aeronáutica durante o regime militar.

Para entender o tema, o Brasil de Fato consultou o professor de teoria política na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade, Paulo Ribeiro da Cunha, responsável pela parte que trata dos militares perseguidos politicamente durante a ditadura cívico-militar no Brasil. Ele explica que o governo já deixou clara a intenção de retirar o direito dos cabos.

“Me parece que é uma questão do movimento de Bolsonaro relacionado aos anistiados que não enxergam a dimensão do problema. A própria Ministra Damares já tinha colocado claramente que essa seria uma política do governo Bolsonaro e deixou claro a sua repulsa à anistia dos militares, entendendo que as pessoas não têm mais o direito de conseguir a anistia o que é fundamentalmente um absurdo.”

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“Não reconhece [direito à anistia]. Não reconhece por quê? Pelo pressuposto de um movimento disciplinar, mas o movimento disciplinar que remete a uma ação política que eles tinham que era obter direitos básicos de cidadania”, continua o professor.

Cunha cita o depoimento de um cabo – que consta no relatório final da Comissão Nacional da Verdade –, que disse: “Nós sabíamos dos limites quando entramos na Aeronáutica: não era permitido casar, ter filhos. Mas a constituição não nos tirava o direito de ser homens, de buscarmos uma cidadania plena”. O homem morreu sem ser anistiado.

“É uma questão complexa, mas é uma grande injustiça, porque os cabos foram anistiados. Depois, passados cinco anos, foram desanistiados e entraram na justiça. Por que eu cito a questão dos cincos anos? Porque é o pressuposto da segurança jurídica”, explica o professor.

Com a decisão do governo, os cabos deixam, automaticamente de receber a reparação econômica mensal, permanente e continuada concedida aos anistiados. 

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Recorte de classe 

Para o ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade, há um evidente “recorte de classes” entre os militares que se manifesta nesse caso. A carreira militar no Brasil tem duas classes distintas, a dos oficiais (tenente, capitão, major, coronel, general…) e a dos praças (soldado, sargento, sub-tenente…). Essas duas portas de entrada são definitivas. Por mais promovido que seja, um praça nunca chegará a ser oficial.

A anistia de militares, portanto, é “socialmente limitada e ideologicamente norteada”, considera o professor.

Ele relembra que a anistia inicial aos cabos incorporou um determinado grupo que foi desanistiado cinco anos depois. Isso também teria ocorrido com cabos do pré-64, que estavam nas lutas relacionadas às causas democráticas e nacionalistas no período antecedente ao golpe. 

“Quando você pega movimentos como o dos cabos, no Brasil, eles nunca eram vistos como movimentos políticos e sim movimentos de quebra de hierarquia, de indisciplina e muitas vezes eram assim tratados. Eles eram socialmente limitados. Diferente dos oficiais que sempre foram julgados por cortes, por processos”, diz. 

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Cunha cita o exemplo do militar João Cândido, o Almirante negro, que participou da Revolta da Chibata (1910), foi anistiado, mas em seguida foi preso. A anistia dele realmente só foi concedida em 1997, quase 90 anos após sua morte (ocorrida em 1969), aprovada pelo Congresso Nacional. 

“Os militares de esquerda, os militares comunistas nunca foram totalmente anistiados. Muitas vezes as anistias só permitiam que eles fossem reintegrados, porque eles eram expulsos, mas não tinham nenhum direito e não voltavam às forças armadas. Diferente dos militares da direita, que eles eram expulsos, eram afastados, depois eram reintegrados, reincorporados, é um exemplo claro do viés como as anistias foram tratadas ao longo da história.” 

Apagando a história

É de conhecimento público que o presidente Jair Bolsonaro é grande admirador do regime militar e já declarou publicamente que as torturas não existiram. Tirar os direitos dos anistiados que lutaram pela democracia é mais um movimento do governo para apagar a história, afirma o professor.

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“Um governo que reconhece um torturador como um herói, você não pode esperar uma outras postura. Um torturador condenado, inclusive. Outro dia ele recebeu o Major Curió. também sofrendo processos por assassinatos de guerrilheiros que se entregaram. Quando você tem um governo com essa postura você não pode esperar outra coisa. O governo Bolsonaro como quase tudo: quer apagar a história.”

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Edição: Rodrigo Chagas