Nos últimos dias, a chamada “grande imprensa” brasileira — notadamente colunistas de jornais hegemônicos — engajou-se em uma ofensiva editorial que é, em essência, uma anomalia jurídica e um desastre ético.
A polêmica em torno das reportagens de Malu Gaspar sobre supostos contatos do ministro Alexandre de Moraes com o presidente do Banco Central, em meio à crise do Banco Master, tornou-se um caso paradigmático de como a mídia tenta transferir o ônus da prova para o acusado.
A coluna em questão, publicada em um dos principais jornais do país, sugere que Moraes teria procurado o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, várias vezes para tratar da situação do Banco Master numa operação que envolveria a venda para o BRB. A matéria cita contatos telefônicos e até um encontro presencial, além de mencionar que a advogada Viviane Barci de Moraes, esposa do ministro, havia firmado um contrato de alto valor com o banco — informações que, por si só, não constituem prova de ilegalidade ou crime.
O comentarista Merval Pereira, em texto posterior, que já começa com um título misógino, não apenas repercutiu a reportagem, como cobrou que Moraes prove sua inocência diante dessas reportagens.
No jargão jurídico mais elementar, isso é absurdo: o ônus da prova cabe a quem acusa, não ao acusado. Essa regra basilar está consagrada no direito civil, no direito penal e nas normas deontológicas que regem o jornalismo sério em democracias consolidadas.
A presunção de inocência — princípio institucionalmente protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro e por tratados internacionais — estabelece que ninguém pode ser considerado culpado antes de sentença transitada em julgado. Requerer que um ministro de Suprema Corte prove que algo não aconteceu, diante de meras insinuações ou relatos não verificados, é uma inversão grotesca da lógica legal.
Conforme apurado, a nota oficial de Moraes esclarece que os encontros com Galípolo e outros dirigentes do sistema financeiro tiveram como foco a Lei Magnitsky — uma legislação internacional sobre sanções — e não a situação específica do Banco Master. Tal explicação deveria ser suficiente sob qualquer critério de responsabilidade editorial minimamente sério.
Mas por que esse erro metodológico grave — a requisição de prova de inocência — ocorre? Parte da resposta pode ser encontrada no perfil e trajetória de alguns veículos e colunistas que, em diferentes momentos da história política brasileira, assumiram posições que ultrapassaram o jornalismo investigativo para entrar no campo da narrativa política.
- Exemplos históricos mostram que a grande imprensa brasileira — incluindo o próprio jornal que abriga colunistas de peso — chegou a apoiar explicitamente o Golpe de 1964 e a ditadura militar, articulando editoriais a favor do regime e recebendo benefícios materiais e políticos no processo.
- Em 2013, décadas depois, alguns desses jornais chegaram a publicar editoriais de retratação, reconhecendo erros na cobertura daquele período.
Entre as críticas que se podem fazer à cobertura contemporânea de episódios como o do Banco Master está justamente a insistência em criar interpretações jurídicas a partir de insinuações, sem o devido rigor investigativo ou base probatória sólida.
A imprensa independente e o jornalismo de investigação competentes entendem que reportar uma denúncia implica verificar os fatos, confrontar fontes e disponibilizar espaço igualitário para respostas incontestáveis de todas as partes envolvidas antes de apresentar um quadro conclusivo. Só assim se exerce a missão de “informar”, em vez de “julgar” na praça pública. Repetir acusações não comprovadas ou apostar em “fontes anônimas” sem transparência é transformar o jornalismo em tribunal sumaríssimo — e isso não é jornalismo, é espetáculo. Processos civis bem instruídos não funcionam assim; imprensa com responsabilidade editorial não deveria funcionar assim, tampouco.
No campo do direito civil, a jurisprudência consolidada sobre responsabilidade civil por dano moral decorrente de comunicação inverídica exige prova cabal do dano e da veracidade objetiva das alegações antes de imputar qualquer conduta culposa a alguém. Levar ao público acusações sugestivas sem evidência robusta é ao mesmo tempo antiético e perigoso para a confiança pública nas instituições.
Ancorar um artigo no jornal majoritário numa narrativa que exige que o acusado “provae sua inocência” é reproduzir um vício antigo de certos segmentos da imprensa: a crença de que a função jornalística é formar opinião, não informar com imparcialidade e rigor probatório. Essa lógica tende a transformar relatos preliminares em sentenças midiáticas e debates jornalísticos em arena de julgamento prévio, um caminho que mina a confiança institucional e ameaça piorar a polarização em vez de esclarecer.
A postura correta, tanto do ponto de vista jurídico quanto editorial, exige que a denúncia seja tratada como o que realmente é: uma linha de investigação inicial. A partir daí, deve ser exigido, com clareza e responsabilidade, que fatos concretos, evidências materiais e provas juridicamente válidas sejam apresentados por quem acusa — não que o ministro acusado de improbidade demonstre sua inocência.
