A ideia propagada por historiadores e memorialistas de que a região de Jacarepaguá dormiu em berço esplendido por várias décadas após o fim da escravidão, sempre me incomodou. Primeiro porque ela se baseava em meia dúzia de bravatas de personagens da época dando conta de um abandono geral de terras que antes eram produtivas até meados do século XIX. Como se basear em declarações tão genéricas para sustentar afirmações tão complexas? Desnecessário dizer que os trabalhos históricos desenvolvidos nas últimas três décadas em nossas universidades têm jogado por terra tal “tese” (a essa questão voltarei numa oportunidade futura). Longe de terras largadas ao léu, o que testemunhamos é o retalhamento e a conversão de muitas dessas terras em empreendimentos imobiliários já nas primeiras décadas do século XX.
Mas penso que o problema de uma ideia como aquela (a do “esquecimento”) guarde outros complicadores.
A ideia de terra esquecida, no caso de Jacarepaguá, acaba atuando no sentido de apagar uma série de processos que foram sendo gestados ao longo do suposto período de esquecimento, situado no caso de Jacarepaguá entre as últimas décadas do Século XIX e meados do XX. O termo esquecimento contribui para apagar os esforços de muita gente, em especial segmentos das classes trabalhadoras para ocupar a região, com a construção de povoados, comércio, redes de apoio, sistemas de comunicação e transporte. Estamos falando de um período rico em expansão de atividades agrícolas na região, com a produção de hortaliças e frutas, tendo a contribuição inestimável de imigrantes portugueses que passam a chegar à região a partir dos anos 1930 e 1940.
Outro processo ocultado da memória sobre o território é o que tem a ver com inúmeros conflitos desencadeados na região, principalmente os ligados a questões fundiárias. A noção de que nada acontecia nas terras de Jacarepaguá faz tábula rasa de inúmeras situações de violência que vitimaram famílias humildes de pequenos lavradores e de comunidades de pescadores que foram obrigados a deixarem suas casas, lotes e plantações por conta da apropriação de terras para fins imobiliário, fato que se tornaria marcante na paisagem social da região a partir dos anos 1940.
Há que se destacar que a ideia de “esquecimento” tem um papel distinto no caso da memória histórica construída sobre áreas como Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes. Ali o esquecimento denotaria não o abandono dos poderes públicos – que seria o caso de Jacarepaguá, por exemplo – mas a existência de um lugar “sem história”. É o que leva a entender vários textos sobre a história da região, que a caracterizam como um imenso areal que só seria incorporado pelas companhias imobiliárias (essas sim, responsáveis pelo despertar desse território…) a partir dos anos 1950-1960.
E as comunidades de pescadores que viviam na região décadas a fio? E as várias comunidades de sitiantes, arrendatários e posseiros que tinham suas moradias e plantações, contribuindo para o desenvolvimento do território? E como elas foram despejadas dali? Por que a incorporação imobiliária da Barra da Tijuca não pôde ser feita respeitando o direito dessas comunidades? Por que o “crescimento” da região teve que implicar no despejo dessa população? Por que a nova história da Barra – mas também de outras áreas como Jacarepaguá – para prevalecer tenha que apagar as histórias das classes populares que sempre viveram nesses territórios?
É todo esse conjunto de vivências e problemas que se tentou apagar, afirmando, por meio do conceito de esquecimento, que esses territórios não tinham história até a explosão imobiliária de meados do século XX. “Esquecimento” aqui nunca foi uma palavra neutra, ingênua; mas um conceito, muito conveniente para um discurso político sobre a memória desse mesmo território, com o fim exclusivo de apagar os traços de violência e injustiça da expansão urbana perpetrada pelo setor imobiliário carioca.
