História

Sertão Carioca em disputa

Antes de Armando Magalhães Corrêa, o território já era debatido na imprensa como problema social, econômico e urbano, longe do mito do atraso natural.
por 19 de dezembro de 2025
O Sertão Carioca
Reprodução Multirio
Atualizado em 22/12/2025 21:47

Tudo bem que não foi Armando Magalhaes Correa que descobriu ou inventou o Sertão Carioca, seja como espaço ou conceito.

Exatos três meses antes do primeiro artigo de Correa sobre o Sertão Carioca no Correio da Manhã, o Diário Carioca publicava um artigo assinado com o pseudônimo Fluminal. E ali se pode ler a primeira tentativa de definição do que seria esse território.

Ou seja, antes de Correa.

Curiosamente o texto – de Fluminal – começa com uma crítica direta a tentativa de enquadrar a região carioca como área inóspita, que nada tinha a ver com o Distrito Federal. Ele ironicamente faz uma brincadeira com o próprio título, “A Cidade e seu sertão”: “Eu diria melhor, porque mais pitorescamente: seu Matto-Grosso”. Para logo depois tecer reparos a essa comparação:

Mas, já envelheceu demais essa pilheria, e não há pilheria que não deixe de o ser, que não perca toda a sua graça, quando envelhece.

Ademais, hesito em falar como quem possue a certeza de haver perfeita semelhança entre a zona rural da capital do Brasil e aquelle Estado.

E o problema da comparação não é que fosse desqualificante para o sertão carioca. É que no entender de Fluminal, a desqualificação de Mato Grosso não se justificaria, porque estava passando por grande “evolução” e “progresso”. Ao contrário do Sertão Carioca. Entretanto, este não devia o seu atraso a um barbarismo ou por estar a margem da civilização. A precariedade vivida pela região tinha a ver com questões sociais e econômicas. Conforme ele sintetiza nesse trecho:

Não creio, em verdade, que exista, por todo o vasto mundo de Christo, capital de grande paiz como o nosso, em cuja área se encontrem verdadeiros latifúndios, inteiramente ao abandono, sem contribuir para a riqueza, nem para a belleza da urbs.

E por ser social e não natural, o autor acreditava que nada impedia que o Sertão Carioca, assim como o “Matto-Grosso” também passasse por um período de maior desenvolvimento.

Quando compreenderão os dirigentes do Districto que ahi existe margem para uma obra notável, inconfundível, impar, obra de molde, a fazer a imortalidade, a gloria de quem a tenha concebido e lhe haja iniciado a execução, pelo menos. Sim, porque, em se tratando de certos empreendimentos, só na “mise em ouvre” se fixam, nítida e definitivamente, as ideias, as intenções, apenas esboçadas, é natural, nos schemas do plano.

E tal plano de recuperação teria que lidar com questões específicas:

Possue uma infinidade de faces o problema do aproveitamento das terras existentes nos arredores desta capital: o social, o sanitário, o econômico, para não dizer senão dos de relevância maior.

E o autor vai esmiuçando cada uma dessas “faces”. 

Social porque com o melhor aproveitamento da terra da região, haveria mais espaço para a construção de habitações proletárias. 

Sanitário porque poderia desafogar o centro urbano, livrando-o, nos dizeres do autor, “da praga dos ‘cortiços’”, e porque “lá se produziriam, em grande quantidade e de qualidade optima, vários gêneros de primeira necessidade, suscptiveis de, mesmo vendidos à população propriamente urbana, por preços módicos, deixarem lucros apreciáveis”.

Econômico devido “à extraordinária valorização que assim teria o chamado sertão carioca”. E que sendo efetivada faria do território um lugar inigualável.

E ainda tinha a questão das “comunicações e transportes”. Muitos entendiam que elas deveriam anteceder qualquer intervenção do governo na região, de modo a tirá-la do isolamento. Contudo, o autor era de opinião diversa:

É discutível a these. Tanto, mesmo, quanto a secularmente controvertida sobre o que nasceu primeiro: a galinha ou o oro.

Iniciado, de maneira inteligente, o povoamento do sertão da Sebastianópolis, estou certo de que logo surgiriam empresas de transportes desejosas de ali operar.

Mesmo o problema rodoviário estava sendo solucionado, principalmente a partir da gestão de Prado Júnior a frente do executivo municipal, segundo ele.

Ou seja, o Sertão Carioca não era um território invisibilizado naquele início dos anos 1930. Na verdade, os holofotes estavam sobre ele.

Não havia muita dúvida também que se tratava de um lugar que passava por inúmeros problemas. O debate sobre estes tinha apenas iniciado. Intervenções como a de Fluminal, Magalhães Correa e Ricardo Palma (que abordaremos futuramente) sinalizavam que as explicações de tais problemas passavam menos por aspectos de ordem natural, e muito mais por questões sociais e econômicas, que deveriam ser mobilizadas para a realização da efetiva integração da região num plano de desenvolvimento da cidade como um todo.

Mas se havia problemas, o Sertão Carioca demonstrava possuir inúmeras potencialidades. E era sobre elas que não apenas os autores acima, como muitos outros agentes sociais da cidade começariam a explorar nas décadas seguintes.

O Sertão Carioca ia se constituindo aos poucos como um tema de apaixonadas discussões a respeito de que papel ou contribuição ele poderia exercer: cinturão verde? Área de expansão urbana? Zona turística? Ou um pouco de cada? Ninguém tinha uma resposta definitiva àquela altura. Pois, novamente, a discussão estava apenas se iniciando.

Havia muito em jogo. A questão toda era que este havia apenas começado. 

Leonardo Soares dos Santos

Leonardo Soares dos Santos

Professor Associado 4 do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense/ Campos dos Goytacazes. Também realizei na UFF meu mestrado (2005) e doutorado (2009) em História. Minhas pesquisas versam basicamente sobre as relações entre o espaço rural e urbano e suas implicações em termos de políticas públicas e configuração de grupos sociais. Sou pesquisador do Instituto Histórico-Geográfico da Baixada de Jacarepaguá e editor-chefe da Revista Convergência Crítica.