Em fins de julho de 1929, o jornal O Paiz publicaria uma extensa reportagem sobre um almoço em Sepetiba, organizado por Júlio Cesário de Mello (o “chefe do 2º districto”) ao então presidente da República Washington Luís. Certamente, devido ao descarado apoio do jornal ao chefe do executivo nacional e, de quebra, ao anfitrião do evento (Dr. Júlio), o maior político do “Triângulo Carioca”, o autor do texto se sentiu encorajado a bajular os convivas:
[dc_resumo][dc_update_note]Uma homenagem em Sepetiba ao sr. Presidente da República
O actual governo da República tem prestado ao Districto Federal inestimáveis serviços. A zona mais conhecida por triângulo ou “sertão carioca” mereceu de S. Ex. o Sr. Washington Luis, especiaes atenções e são em grande número e de vulto os melhoramentos que ali se verificam.
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Contam-se em mais de 10 as excellentes estradas de rodagem, e toda a extensa zona é servida por esplendidos reservatórios de agua sendo que o de Campo Grande, hontem inaugurado, tem capacidade para 16 milhões de litros. Em cada canto do longínquo triangulo há uma escola que, com raras excepções, tem a sua matricula excedida pela affluencia extraordinaria de alumnos.
Explica-se assim facilmente o desejo que os habitantes daquela região nutriam de poderem publicamente e de um modo eloquente, testemunhar ao Sr. Washington Luis a sua gratidão (28/07/1929, p. 2).
De abandonada e parada no tempo (Brasil Colonial), o “sertão carioca” que emergia nas páginas era um lugar pujante, salubre e pleno de serviços públicos de altíssima qualidade.
Mas, independentemente da avaliação que se fizesse, o mais importante a se destacar é que nesses trechos de reportagens da segunda metade da década de 1920, a área conformada pelos subúrbios e zona rural era denominada de “sertão”, um “sertão carioca”. Eis o sertão não como adjetivo, mas como nome.
Mas quando os anos 30 chegam, pode-se observar uma pequena alteração na percepção que as pessoas fazem desse “sertão carioca”. Ele não é mais confundido com os subúrbios, passando a nomear apenas as freguesias da zona rural: Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz.
Uma pequena nota publicada pelo jornal Diário de Notícias é elucidativa: “Meia dúzia de postos anti-ophidicos nos subúrbios mais distantes e no sertão carioca – eis uma necessidade que se impõe e que, supomos, ninguém discutirá” (14/06/1932, p. 2).
[dc_banner_meio]Daí que ele passe a figurar quase como sinônimo do chamado “Triângulo carioca”, o que explica também porque o nome, tanto de um quanto de outro, apareça tantas vezes associado ao nome de Cesário de Mello, o político dominante dessas bandas por boa parte da primeira metade do século XX. Na verdade, a associação foi de mão dupla, bom que se diga. O próprio Cesário, a partir dessa mesma época seria sempre retratado pelos jornais como “representante do sertão carioca” (segundo a imprensa amiga) ou “politiqueiro do sertão carioca” (no dizer dos adversários).
As menções a esse “sertão carioca” iam se avolumando nas páginas dos diários cariocas. O interesse por ele, por isso mesmo, crescia. O que motivou alguns personagens da época, escritores e jornalistas, a se debruçarem com mais vagar sobre esse peculiar território da cidade.
Um deles foi Magalhaes Correa, que nas dezenas de artigos que ele fez para o Correio da Manhã entre 1932 e 1933, procurou esquadrinhar todos os aspectos visíveis desse Sertão Carioca. Aliás, o sucesso de seu empreendimento foi tamanho que o público passou a chamar o território com o mesmo termo cunhado anos atrás, mas com letras iniciais em maiúsculo. Sertão Carioca não era apenas um título ou indicação geográfica. Essa grafia demonstrava que ele – o termo – era agora um nome próprio.
E o curioso de tudo isso: Sertão Carioca para Magalhaes Correa não era o mesmo que “Triângulo Carioca”. Ele nada tinha a ver, portanto, com Campos Grande, Guaratiba e Santa Cruz. O Sertão Carioca de Magalhaes era como ele dominava a Baixada de Jacarepaguá. Eis a sua descrição:
A vasta zona da terra carioca, denominada planicle de Jacarépaguá (valle dos jacarés), comprehendida entre os massiços da Tijuca e da Pedra Branca, é constituida pelos valles dos tributários das lagôas da Tijuca e Camorim; por essas lagôas e a de Marapendy (mar limpo), na restinga de Itapeba (lage), pelos Campos de Sernambetiba e pela Restinga de Jacarépaguá, com suas dunas, a qual é o anteparo do Oceano Atlântico. Começa no Campinho, com o nome de Marangá (valle da batalha) entre este e o morro do Valqueire (valle de pau-ferro), na altitude de 40 metros do nivel do mar. No Tanque, a 14 kilometros do Campinho, dilata-se consideravelmente, chegando a ter 6 kilometros de largura. Deste ponto, vae progressivamente augmentando, até encontrar o Oceano, onde alcança a sua maior largura, formada pela bacia hydrographica das lagôas da Tijuca, Camorim, Marapendy e Campo de Sernambetiba. Ahi da Barra da Tijuca (Morro da Juatinga — Jua branco) até a base do Morro das Piabas, alcança 23 kilometros de extensão, mais ou menos. Do Campinho ao Oceano, a extensão é de 15 kilometros; o terreno vae em declive suave, secco, até as Estradas da Tijuca, do Camorim, Vargem Grande e Piabas; dahi ao littoral, pode-se dizer, é quasi em sua totalidade alagadiço, com as lagôas, os campos (Sernambetiba), as mattas Tropophilas e as Halo-Philas. Essa grande planicie tem por assim dizer a forma topographica de um funil, cuja area é calculada em 160.000.000 de metros quadrados. Foi esse pedaço do Districto Federal que muito me impressionou e por isso pensei relatal-o em pallida notas, apanhadas em excursões, visto não ter sido objecto de observação dos nossos estudiosos. Ahi encontrei uma população laboriosa, bem brasileira, cujos usos e costumes me levaram á denominação de Sertão Carioca.
Na verdade, o relato de Magalhaes Correa pode ter sido o mais célebre, mas não foi o único. Ele, sem dúvida, acabou sendo o responsável por colocar a região sob o holofote da opinião pública. Porém, a sua versão sobre a mesma região não foi definitiva. Os marcos do Sertão Carioca foram sendo alargados e redefinidos logo depois da publicação de seus textos. O território estava em disputa, inclusive em termos de seu sentido. E elas só escalariam nos anos seguintes, em todos os sentidos.
Para saber mais:
CORREA, Armando Magalhães. O sertão carioca. Separata do Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro, 1936.
SANTOS, Leonardo Soares. Um Sertão entre muitas certezas: a luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro (1945-1964). 1. ed. Rio de Janeiro: Agbook, 2018. v. 1. 292p .




